Um conto de matrix - o crente e o ateu



O garçom coloca mais uma cerveja gelada na pequena mesa circular que, de tão esquálida, trepida freneticamente. Não é possível saber ao certo se o pequeno terremoto é causado pelo peso da quinta garrafa depositada sobre ela ou pelo calor da discussão entre os dois amigos parcialmente entorpecidos.
O maior e mais agressivo praticamente berra: Meu amigo, digo, por hora ainda amigo, quer dizer que o senhor conhece tudo que existe entre o céu e a terra?
O rapaz por detrás de suas grossas lentes para miopia retruca comedidamente mas em tom firme: Ora, sei o suficiente para qualificar sua crença como improvável...
- Minha crença? Espero que esteja ciente de que "minha crença" básica é compartilhada por milhões de pessoas em todo o globo!
- Não nego, mas isso não reveste de credibilidade sua fé. Veja que uma quantidade muito maior de gente já acreditou que o corpo humano funcionava a partir de quatro humores primordiais como a bile negra, a bile amarela, o sangue e a fleuma. Nossa medicina foi por cerca de 1500 anos baseada nos conceitos de Galeno! Digo mais meu amigo, muito mais gente acreditou que a Terra era achatada como uma panqueca e quando um homem, Galileu Galilei, afirmou que, na verdade, ela poderia ser redonda, bem, aí a coisa pegou. Vale dizer que crentes que proferiam a sua fé quiseram levá-lo à fogueira!
Vermelho como o próprio capeta o corpulento crente se inclinou por sobre a mesinha derrubando quase todas as garrafas: Pois saiba que a minha crença também permite que erremos, minha crença reconhece a imperfeição humana! De qualquer forma, os erros cometidos pelos falsos profetas e líderes religiosos profanos não invalidam a minha fé!
Com um sorriso cínico e fazendo um gesto para que o amigo se sentasse e se acalmasse, o ateu magrinho acrescentou: Ok, ok não precisa se exaltar tanto assim, mas foi você que levou a conversa para esse lado, colocando milhões de idiotas no meio. Sei que você, distinto companheiro, está muito acima da média para alguém que se deixa iludir pelos anseios e medos inerentes do ser humano.
- Como assim "se deixa iludir"? Por acaso acha Deus uma ilusão? - ameaça novamente se levantar.
- Como posso definir Deus melhor? Ninguém o vê. Ninguém fala diretamente com Ele. E, convenientemente, a gente só poderá vislumbrar sua existência após nossa morte. Desculpe meu amigo, mas se eu precisasse criar um Deus para todos enganar a todos, seriam estas regras que eu iria transformar em dogmas, pois assim nunca seria desmascarado.
Novamente se exalta, esmurrando a mesa: Então nega todos os milagres já registrados ou mesmo tem explicação para todos fatos sobrenaturais demoníacos ou divinos existentes no mundo?
- Acredito que haveria uma explicação racional para tudo isso. Com certeza fraudes deliberadas, alucinações coletivas, fenômenos naturais pouco conhecidos, falsas interpretações da mente, medo, dentre outras inúmeras possibilidades. Veja meu amigo, se alguém se recupera de uma doença incurável é mais provável que o corpo, mente ou mesmo um fator externo concreto sejam os responsáveis pelo feito do que uma entidade invisível que nos observa lá do alto de seu trono nas nuvens.
- Lamentável que seu mundo seja tão pequeno - acrescenta o crente já mais resignado.
- Meu mundo é pequeno? É você que quer reduzir dezenas de fenômenos a uma simples religião.
- E você, meu caro, acredita piamente que o conhecimento humano, falho como você mesmo citou, poderia vislumbrar todas as dimensões de realidade existentes. Acredita que nossa ciência poderia explicar a existência ou não de um ente divino. Acredita que seus sentidos e mente são todas as ferramentas necessárias para entender o universo e seus infinitos desdobramentos.
- A razão é única, não importa se esta é colocada para um gênio ou para um chipanzé.
- Pois eu acho que se Deus nos tivesse feito a imagem e semelhança de um chipanzé, estaríamos aqui discutindo se a lua existiria concretamente ou se era uma imagem desenhada na abóboda. Se nos tivesse feito a imagem e semelhança de grilos estaríamos discutindo se haveria vida inteligente além do gramado ou porque Deus haveria de ter criado as aranhas se de fato ele é bom.
- Acredito na ciência e na razão e ela me diz que quando morrermos nossa consciência se esvairá como um computador que se desliga definitivamente. Sem fluxo de energia elétrica não há pensamento. Sem pensamento não há vida. Simples assim. Ponto final.
- Também acho que chegamos ao ponto final, camarada, é uma pena que sua "vida" após a morte seja tão cruel. Para sua sorte sei que tanto eu quanto você ainda terminaremos esta conversa em um outro plano de existência... Pode contar com isso, meu irmão.
- Quem sabe, meu amigo? Apesar de não acreditar nisso, torço que seja verdade, afinal, o que tenho a perder?
Os amigos já bem zonzos pelas cervejas tomadas se despedem com um abraço. Suas crenças eram bem diferentes mas a amizade sempre sobreviveu a estes detalhes. Já eram amigos a mais de vinte e cinco anos.
O corpulento chamou um táxi e advertiu o amigo ateu a fazer o mesmo se não quisesse antecipar aquela conversa no além. Imprudentemente, o rapaz magrinho não deu muita atenção ao conselho do amigo. Passara muito tempo escutando suas ladainhas das quais sabia não ter nenhuma razão de ser. Aquele conselho estava na mesma categoria, besteira. A bebida nunca afetara seus reflexos significativamente. Ademais, quando bebia costumava dirigir mais devagar que uma moça de carta nova.
Ainda pensava em como poderia um cara tão inteligente defender algo tão sem provas quanto a existência de uma vida além da realidade em que viviam quando, repentinamente, suas pupilas se retraíram com a luz de um carro que vinha a toda pela contramão. Estava tão bêbado que nem percebeu que quem entrara na contramão fora ele mesmo.



O impacto foi forte. A dor foi breve. Acordou dentro de uma espécie de casulo, cheio de cabos e tubos conectados no corpo. Tinha um grande tubo corrugado enfiado em sua boca. Seus olhos mal podiam enxergar com alguma nitidez, ainda mais mergulhado naquele líquido translúcido mas morno. Seu corpo todo doía. Parecia que tinha câimbras em todo parte e sentia uma agulhada cada vez que tentava mover um músculo. O que estava fazendo lá? Aliás, onde era "lá"? Lembrava claramente do acidente, mas se seu amigo estivesse certo não era assim que deveria ser o céu. Mesmo o inferno estava descartado. Talvez o purgatório. A ideia, entretanto, foi descartada quando o líquido morno amarelado foi escoando e o casulo se abriu como um cockpit de um jato. Aquilo definitivamente não era um sonho. O frio era intenso e real, mas o medo era maior ainda. Não enxergava muito bem, mas parecia que o ambiente era mal iluminado. Tinha a impressão de estar cercado de arranhas céus negros e cobertos com pontos de luzes vermelhas. As estruturas eram semelhantes a espigas de milhos gigantes escurecidas. Parecia que cada "grão"era um outro casulo.
Repentinamente, aquilo surgiu. Uma coisa que habitaria todos os seus pesadelos dali para frente. Um ser que lembrava uma cabeça de inseto ou aranha enorme e voadora. Possuía vários olhos vermelhos de tamanhos diversos espalhados pelo seu casco. Tentáculos longos e com aparência mecânica saíam de sua parte traseira e flutuavam a poucos centímetros de seu corpo. A grosso modo a coisa lembrava uma lula de pesadelos. Cada um dos tentáculos possuía um aparato diferente na extremidade, como se fossem ferramentas de um mecânico. Seu movimentos eram fluidos e rápidos. Não podia ouvir nada, talvez porque o fluido ainda estava em meus ouvidos.
O medo era indescritível. A sua mente estava confusa e embaralhada. Não conseguia pensar. A dor era muito presente, mas ele quase a esquecia enquanto fixava seus olhos na coisa. Após a coisa, aparentemente, examinar seu corpo todo com luzes e ferramentas dos tentáculos, o líquido começou a encher o casulo novamente. O medo incrivelmente aumentou. O pior momento chegara. Dois tentáculos agarraram sua cabeça, imobilizando-a e um terceiro, com uma espécie de agulha negra, o perfurou abaixo do queixo. Sentiu um gosto amargo e uma sensação de queimação na língua. A dor entortou sua boca em um grito mudo. Tudo apagou.
Recobrou a consciência em um leito de hospital. A dor voltou, mas agora era localizada. Sentia dor nos braços, na perna direita e no abdômen. O rosto parecia anestesiado.
Mais tarde, parcialmente recuperado, soube pelos médicos e psicólogos que esteve virtualmente morto por cerca de sete minutos, quando os médicos conseguiram ressuscitá-lo. Tivera uma experiência de quase-morte. Ele havia morrido e viu o outro lado. Daquele dia em diante se tornara menos arrogante em defender suas crenças, mas ainda não concordava com as teses de seu amigo crente. Também nunca mais foi para casa dirigindo após esses debates regados a muita bebida.

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