O que veio primeiro o aborto ou o óvulo?
Quem
já não ouviu a célebre pergunta: O que veio primeiro a galinha ou o ovo?
Geralmente utilizada como pergunta retórica, simplesmente para retratar ou
ilustrar situações insondáveis, a questão, na verdade, é cheia de ciência. A
controvérsia, aparentemente sem solução, abriga um peso teórico que abarca de
Darwin a questões de direito. Sim, questões de direito. Tentarei explicar a
seguir sucintamente.
Ao
assistir uma sisuda aula de direito, brilhantemente ministrada por um renomado
professor de direito civil, o clima de seriedade foi quebrado quando este
conseguiu introduzir a questão galinácea na matéria. Afirmou o mestre que a
pergunta tinha, sim, uma resposta. Saiu-se com essa, como que se naquele momento
retirara a Excalibur da pedra: - Na verdade, o que surgiu primeiro foi a
galinha, pois, o ovo já existia, vejam que os dinossauros já nasciam de ovos há
tempos antes do projeto da galinha. Boa resposta, pensei, e ainda que não tenha
concordado plenamente preferi não me manifestar.
Analisando
os operadores de direito, sabemos que são famosas as utilizações de “brechas na
lei” como forma de defesa. Imagino que o que meu dileto professor utilizou,
naquele caso, foi justamente uma “brecha da questão”, sendo óbvio que a
pergunta não se referira a ovos em geral, mas a ovo de galinha, especificamente.
Mesmo porque a questão visa criar uma situação insondável, no caso, o mistério
da ordem de surgimento das galinhas ou seus ovos, assim fica claro que o ovo ao
qual a questão se refere é unicamente do animal que o bota tradicionalmente.
Mas a resposta do meu professor ainda é válida, pois tem boa dose de
hermenêutica.
Uma
análise um pouco mais próxima dos ensinamentos de Darwin, todavia, nos traria
mais perto da resposta, de tal forma que é conveniente um exercício mental
apenas a título de ilustração, sem a pretensão de desvendar os mistérios da
evolução ou compromisso com a exatidão teórica darwiniana. Senão vejamos, se as
criaturas foram evoluindo através de mutações diminutas que os tornavam mais
aptas que as demais, em um determinado ambiente, poderíamos admitir que, em certo
momento da evolução da galinha, surgiu um animal muito próximo dela, mas ainda
não uma real e completa galinha, como nós tão bem conhecemos. Chamaremos este
animal de pré-galinha apenas para fins didáticos. Como bem dizemos, a
pré-galinha ainda não era galinha, propriamente dita, de forma que ainda não
poderíamos dizer que ela surgiu antes do seu ovo. Não ainda. Porém, em um belo
dia, nossa estimada pré-galinha acabou por colocar um ovo especial, recheado de
mutações especiais, este sim, com os genes completos da nossa conhecida galinha.
No caso, para simplificar, vamos desprezar o fato de que nossa galinha, com o
título de primeira galinha, seria, logicamente, a única galinha presente no
mundo e, obviamente ela teria que acasalar com um pré-galo. Vamos admitir que
este pré-galo, apesar de felizardo, não influiria na reprodução de outras
galinhas idênticas a nossa primeira galinha por ser muito próximo de nosso
atual galo, além de recessivo em todos seus fenótipos. Admitido isso, voltemos
ao nosso ovo especial botado pela pré-galinha. Pergunta-se: seria este ovo especial
um autêntico ovo de galinha? O interessante da história vem agora, pois ainda
que biologicamente a questão tenha se exaurido, ou seja, para um biólogo aquele
ovo é de galinha e, portanto, ao menos para os biólogos, a questão galinácea
estaria respondida. O que teria surgido primeiro teria sido o ovo de galinha e
não a galinha, se considerarmos que quem botou o ovo da primeira galinha foi um
pré-galinha, um ser ainda não merecedor sequer do título de “galinha” que dirá
de “primeira galinha”.
Operadores
do direito poderiam fazer leituras diferentes deste mesmo fato, prolongando a
celeuma, para a surpresa e assombro dos biólogos. Muitos diriam que não teria
sido o ovo de galinha que surgira primeiro, pois aquele primeiro ovo de galinha
não era, na verdade, um ovo de galinha como queriam crer toda a comunidade de
biólogos, mas seria um ovo de pré-galinha, uma vez que quem o botou foi uma
autêntica pré-galinha. Por esse pensamento, a autora do primeiro ovo de galinha
não fora uma galinha, e sim uma pré-galinha muito especial, visto que não seria
correto chamar aquele ovo, que confinava em seu interior a primeira galinha, de
ovo de galinha em virtude de sua maternidade comprovada. Para muitos operadores
do direito, o conceito de ovo de galinha teria relação com sua poedeira e não
com o seu conteúdo, principalmente se estes operadores advogassem pela
pré-galinha. Estes operadores concluiriam, portanto, que a eclosão desse ovo
traria a resposta da questão galinácea, sendo que o que teria surgido primeiro
seria a galinha nascida de um ovo de pré-galinha. A confusão persistiria apenas
porque o conceito de ovo de galinha é dúbio, na medida em que muitos
entenderiam que ovo de galinha é o que encerra uma galinha e outros que ovo de
galinha é aquele posto por uma galinha. Certo, porém, é que biologicamente não
haveria essa dubiedade.
O
exemplo pode ter falhas com relação à teoria da evolução das espécies, contudo,
com relação às interpretações dos operadores do direito, fato muito mais
comprovado, em muito pouco posso ter me enganado. Curioso como um fato único e
concreto pode gerar interpretações diversas e caminhos e decisões tão ímpares
quando analisado por mentes e ciências diversas.
Dada
a complexidade, as questões que envolvem o aborto carregam em seu bojo a mesma
essência insondável da questão galinácea, mas são tratadas, no mais das vezes,
como meu mestre tratou do problema, ou seja, fixando-se nas técnicas próprias
do direito, como a sua hermenêutica ou mesmo julgando e analisando segundo
padrões dos operadores do direito. Pelo exemplo da questão galinácea podemos
notar o quão temeroso isso pode ser.
Em
suma, questões multidisciplinares exigem que o operador do direito se exceda em
sua ciência, abrindo sua mente e avançando em campos pertencentes a outras
áreas além de seu conhecimento. Foi o caso da audiência pública acertadamente
convocada no julgamento da ADIn 3.510, que acabou por autorizar a pesquisa com
as células troncos embrionárias. Na referida audiência pública, diversos
especialistas e interessados tiveram direito a voz o que propiciou, com
certeza, uma decisão muito mais acertada e democrática.
Digna
de menção também é o caso dos fetos anencéfalos, por assim dizer, aqueles que
não possuem o desenvolvimento completo e adequado do tubo neural,
consequentemente gerando ausência parcial do encefálico e da calota craniana.
No caso, o STF julgou constitucional o aborto de fetos nesta condição. Ainda
que tenha possuído poucos vencidos, os Ministros Peluso e Lewandowski, a
questão é tormentosa e gerou insatisfação de muitos grupos, principalmente
ligados à religião, e promete ainda muita discussão.
O
que há de semelhante entre as duas celeumas é o dualidade da decisão. Ainda que
muitos Ministros tenham colocado algumas condições acompanhando seu veredicto,
a ação apenas comporta a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade. Assim,
ou a questão é aceita por nossa Lei Maior ou não é, e ponto final.
Ocorre
que com a biologia muitas coisas não possuem simplicidade suficiente para ser
tratada com tal dualidade. Muitos de seus fenômenos são graduados, escalonados,
possuem patamares, etapas, níveis e até transformações que, aos olhos do leigo,
não são tão evidentes. Assim, para o direito, muitas das vezes, há
homossexualismo ou não, há pedofilia ou não, há intenção ou não, há vontade ou
não, há sanidade ou não, há anencefalia ou não, há vida ou não, há perigo de morte
ou não, há estupro ou não, há direito de escolha ou não. Contudo, a análise
muitas vezes peca pela falta de percepção no tocante às graduações dos
fenômenos biológicos.
Retornemos
à questão do aborto, uma das mais complexas da atualidade e ainda sem muita
definição. Ela envolve o direito à vida, o direito da gestante, o direito do
nascituro e envolve uma gama enorme de matérias satélites não menos
importantes, como religião, filosofia, biologia, política, sociologia e por aí
vai. Não há como analisar a questão sem foco na multidisciplinaridade inerente
a ela, ao menos não com o compromisso de uma resposta mais próxima da adequada.
Talvez a resposta certa nem mesmo exista.
O
direito tem tratado da questão com uma dualidade e simplicidade em muitos casos
inaceitáveis. A despeito do enorme grau de complexidade do tema nosso direito
já fixara a possibilidade de aborto em suas excludentes de ilicitudes muito
antes da possibilidade de aborto de feto anencéfalo. Analisemos as excludentes
sem, contudo nos esquecermos da carga biológica envolvida e da graduação
inerente ao feto. O chamado aborto necessário, qual seja, aquele praticado por
médico para salvar a vida da gestante peca no ponto em que não considera o
direito crescente do feto na medida em que se desenvolve, nem a gravidade da
situação da gestante. Não haveria aqui a possibilidade de se trocar a morte
certa do feto pela possibilidade de morte da gestante? Em se tratando de vida é
justo se trocar o certo pelo incerto? Em se havendo tal possibilidade, o
direito da gestante excedeu ao do feto inadvertidamente. Mais grave, contudo,
seria o aborto sentimental, qual seja, aquele autorizado e praticado por médico
para as vítimas de estupro. Em tese, autoriza o abortamento em qualquer fase da
gestação. No caso, não há perigo físico para a mãe, mas apenas a opção baseada
na intolerância ao produto de uma violência sexual. Não seria razoável que o
direito de escolha da mãe se reduzisse na medida em que a gestação avançasse? Não,
aqui o direito de escolha da mãe reina absoluto. O direito decidiu, em sua
dualidade, pelo sim. Ao feto, em qualquer fase de desenvolvimento, nada resta a
recorrer.
Com
relação à anencefalia o que talvez incomode muitos seja essa dualidade. A
anencefalia possui graduações, e uma decisão tão absoluta se confunde com a
imposição de aborto para o caso. Talvez, alguns casos de anencefalia não
devesse permitir o aborto. Vale a análise mais profunda.
Talvez
essas questões devam considerar que a gestação é um processo dinâmico e não um
fato estático de gravidez ou não gravidez. A escolha da mulher é um direito a
ser respeitado, todavia, em sendo a gestação um processo em constante mudança,
tal direito, em qualquer hipótese sofre alterações concomitantes com o
desenvolvimento do feto. Assim, quanto mais próximo do desenvolvimento pleno o
feto esteja, maior será seu direito à vida e menor o direito de escolha da
mulher. À biologia cabe definir este ponto crucial, ou até quem sabe a
graduação do direito, com menos inexatidão que o direito tem feito.
Talvez
seja o momento dos operadores de direito atentarem mais às questões chaves e
menos nas questões jurídicas, sob pena de sacrificarmos vidas a esmo, além de perdermos
enorme tempo e energia em discussões do ovo de galinha ou do ovo com galinha.
para passar na prova da OAB
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Para meditar:
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