Transferência de Consciência, Imortalidade e Espiritualidade
Mais uma do Raymond Kurzweil. Na verdade, a ideia não é nem nova nem exclusiva dele. Cada dia mais e mais pessoas adotam esta visão como certa e provável a despeito de sua enorme carga fantástica. Ocorre que relendo um dos livros mais antológicos de Ray: "A Era das Máquinas Espirituais", acabei me atendo mais a um aspecto perturbador, para dizer o mínimo. Estou falando de uma suposta imortalidade, baseada na transferência de sua memória para um meio artificial, no caso, uma máquina similar a um computador, ainda que, tecnologicamente, muito mais avançado.
A ideia não seria, contudo, uma transferência abrupta, como a instalação de um software em um computador novo ou a transferência de seus dados para um celular novo. O processo seria lento, mas ao mesmo tempo inexorável. No futuro de Kurzweil, inevitavelmente, a maior parte dos humanos optarão por alguma forma de implante tecnológico, seja para corrigir um problema de saúde, seja para um melhoramento puro e simples.
Pessoas com alguma deficiência congênita poderiam contornar seu problema com um simples implante que faria as vezes do órgão defeituoso. Cegos teriam implantes óticos que lhe dariam a visão, surdos ouviriam pela primeira vez, membros artificiais e de órgãos melhorariam e ampliariam a vida de inúmeras pessoas. Em verdade, isso já está ocorrendo. Implantes cocleares já trouxeram a audição a pessoas que nunca ouviram na vida. Implantes diretamente ligada ao cérebro já transferiram imagens, ainda que de baixa definição, para pessoas que nunca vislumbraram a luz. Membros complexos como mãos já facilitam muito a vida de desmembrados de nascença e vítimas de acidentes. Já surgem os primeiros implantes cerebrais. Na Universidade da Califórnia do Sul, uma equipe de pesquisadores já efetuaram os primeiros testes de implantes de memória que, segundo afirmam, melhorou o desempenho da memória de curto prazo em cerca de 30%. Independente, deste fato, esses estudos tenderão a surgir no mundo inteiro e abordando várias das facetas da mente. Algumas fracassarão vergonhosamente, outras terão um sucesso relativo. Mas creio que será só questão de tempo até itens tecnológicos muito bons surjam e, quem sabe, estes itens sejam até indispensáveis.
Sim, talvez alguns itens tecnológicos sejam no futuro tão fundamentais quanto os nossos celulares se tornaram. Quem imaginaria que um simples telefone tecnológico fosse usado para tudo e muito menos para telefonia em si? Este aparelho, hoje, autentica sua identidade em redes sociais, bancos, cadastros; substitui documentos; paga contas; nos localiza; nos informa; nos fornece comunicação e até, ainda que raramente, possibilita falar com alguém.
Neste cenário do futuro, o homem estaria tão modificado com inúmeros implantes que sua transferência de memória, seria algo como transferir seus dados para um notebook novo.
O extremo da ideia é o que talvez mais nos choque. Imortalidade da mente por meio de sua transferência para um outro meio não orgânico. Kurzweil acredita que não morrerá pois quando sua hora chegar, sua memória, sua essência, suas experiências, seu conhecimento seriam transferidos para um super computador. Seu corpo morreria, mas não sua mente. Talvez sua alma. Sim, o assunto é bem polêmico e, creio, ainda bem distante de se concretizar. Particularmente, acho que chegaremos a ter uma tecnologia compatível com algo parecido, mas não acredito que nossa complexidade seja tão facilmente desvendada. A essência de nossa mente é algo muito profundo e ainda pouco compreendido. Há suspeitas que ela trabalhe em nível quântico, fato que tornaria sua transferência um problema sem solução, devido ao princípio da incerteza e outras singularidades ainda pouco estudadas da física quântica. Convenhamos que para criar um software eficiente temos que conhecer o hardware profundamente. O cérebro e a mente ainda guardam segredos insondáveis. O que dirá a alma e espírito?
A situação, apesar de tudo, possibilita que façamos um experimento mental e religioso de extrema valia.
Os evangelhos são cheios de referências onde Jesus nos alerta do afastamento das coisas mundanas para um desenvolvimento espiritual pleno. Mas como nos afastar de nossos maiores desejos? Como nos afastar de nossos bens? Do dinheiro? Como não desejar nossa casa e carro? Como abrir mão de nossa aparência? Do sexo? Da fama ou da vontade de ser bem quisto pelos outros? Como abrir mão de nossa vaidade? De nosso poder? No extremo, como amar mais a Deus do que nossos filhos, pais e parceiros? O desafio é muito grande.
Mas vamos supor que o mundo de Kurzweil chegue antes do esperado e, antes de nossa hora fatídica de encontrar a implacável morte, sejamos transferidos para um substrato artificial. Lá estamos nós (se você me permite acompanhá-lo em sua hora) em nosso leito de morte, não mais "morte" realmente, onde "apagamos" de vez, supostamente desfalecendo mentalmente e perdendo tudo que éramos em vida. Extraordinariamente, "acordamos". Sem nenhuma das sensações que nos eram tão comum, como a visão, audição e o tato. Mas conscientes de nós mesmos, sabemos quem fomos e acreditamos que sobrevivemos ao processo de morte de forma absoluta. Vemos por meio de sensores que apesar de avançados não se igualam a nossa visão original efetuada por meio de nosso saudosos olhos. As imagens possuem cores diferentes e os movimentos são percebidos de forma diferente como se fossem muito mais lentos e borrados. Ouvimos, mas muito mais do que ouvíamos antes e os sons não trazem as mesmas emoções. Ainda não sabemos como falar.
O trauma é grande não é? Talvez os cientistas do futuro nos façam acordar com nosso "corpo", na verdade um corpo virtual espelhado em nossa aparência real, para minimizar estes traumas. Acordaríamos em uma espécie de Matrix, mas diferente do filme, saberíamos que transcendemos para o ambiente virtual por termos perdido nosso corpo real. Seríamos seres essencialmente mentais, sem corpo. Nossa vida transcorreria no mundo virtual.
Mas voltemos para a simulação anterior muito mais áspera, para melhor entender nosso experimento mental.
Acordamos dentro de um computador. Um supercomputador é verdade, talvez diferente de todos nossos conceitos de computador, mas ainda assim um máquina. Não temos fome, não temos sede. Não sentimos mais sono. Todas estas necessidade do nosso corpo orgânico. Lembramos das sensações mas não mais a sentimos. Não temos estômago para roncar ou olhos para arder ou pender pesados. Nosso nível de atenção não decai.
Vou deixar você sozinho em sua experiência fora de seu corpo. Bom exercício.
Cade o meu corpo? Meus braços e pernas, minha barriguinha de chope? Na verdade, desta eu não tenho tanta saudade. Dores? Lembro de tê-las sentido mas não sinto mais nada. Sem meu torcicolo, dores de cabeça, estômago, costas e joelho. Lembro delas mas não as sinto mais. O fato de não ter mais corpo deve influir bastante nisto, penso, sentindo um pouco de graça na piada, mas não posso rir. Rir? Como se não tenho mais cabeça, que dirá uma boca? E meu rosto? Não era grande coisa mas era eu. Como eu posso ser eu sem meu rosto? Não sinto minha boca. Não tenho mais paladar. Não sinto meus dentes. Não engulo mais minha saliva. Não preciso mais ir ao banheiro. Eu até gostava de ir ao banheiro... aliás, MEU DEUS, não tenho mais pênis. Talvez não sinta falta do xixi mas o sexo até que era bom. O desespero começa a crescer mas não acelera o meu coração nem aumenta minha pressão. Não sinto frio na espinha apesar de sentir um medo extremo. Eu beberia um copo de água para me acalmar ou fumaria um cigarro, mas sequer sinto vontade de consumir estas coisas. Como posso não sentir fome, se comer era uma das coisas que eu mais amava fazer? Como mente sem corpo acho que minhas prioridade mudam bastante. Não tenho necessidades biológicas. Não tenho necessidade de moradia. Afinal, não sinto mais frio ou calor. Percebo que não tenho sensações. Minha mente está sedenta de algo, talvez por não estar sendo estimuladas por sensações corporais full time. Não desejo mais dinheiro ou carro. Logo eu que tinha uma Ferrari como sonho de consumo, não sinto mais nada por aquela lata velha. Mas acho suas linha bonitas ainda. Da mesma forma que acho bonitas a curvatura de uma garrafa térmica perto do meu sensor ótico. Percebo que minha vida "encarnada" foi rodeada de falsos valores. Quanto tempo perdi, juntando tralhas na minha casa. Busquei amontoar dinheiro e investir corretamente para garantir um futuro próspero. No fim, nem isto me garantiu, afinal só estou aqui porque me ofereci para o experimento. O custo ainda é proibitivo. O interessante é que não me importo mais com as coisas que acumulei e valorizei a vida toda. Mas se tivesse ainda um coração ele estaria apertado por todos os momentos que não tive ao lado de minha filha e esposa. Se tivesse ainda um corpo ficaria abraçado a elas um tempo infinito. Estou vivo? Talvez uma parte de mim, mas a melhor se foi, pois ela me possibilitava abraçar e beijar as pessoas que ainda amo muito. Não tenho, de qualquer forma, muita vontade de vê-las, pois tenho medo de percebê-las sem poder tocá-las. Com certeza, elas ficarão decepcionadas comigo. Deveria ter vivido uma vida menos apegada. Deveria ter apreciado mais a vida real. A vida virtual não me parece muito atraente. Sou uma lembrança consciente. Será que sou mais que isso? Nem meus receios parecem reais. Meus medos e dúvidas apesar de profundos e infinitos parecem ser apenas protocolar pois meu corpo não responde. Minha tristeza é intensa, mas não sinto seus efeitos. Meu humor não pode se manifestar dentro de mim. Sinto falta de mim mesmo. Nunca senti isso antes, mas o suicídio não me parece uma ideia ruim agora. Talvez fosse melhor terminar com tudo pois não sei se estou disposto a me adaptar a isso. Suicídio... Apagar meus arquivos mentais seriam suicídio? De qualquer forma, por força contratual não posso sequer cogitar isso. E dizer que a imortalidade não me pareceu uma desvantagem quando concordei com os termos...
O experimento acabou.
O que acho mais válido neste experimento é nos mostrar como nos apegamos a coisas tão sem valor e deixamos passar quase todas que realmente importam. Jesus nos preveniu, mas como somos carne, seu clamor pareceu inatingível. Talvez, quando nossa experiencia final chegar, percebamos o quanto fomos cegos e teimosos em insistir em valorizar as coisas do mundo em detrimento do amor ao próximo e a Deus, na essência, um reflexo de nós mesmos e de nossa alma.
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