Um conto de Matrix - A carne que pensa e o silício que sonha



A criança corre tentando escapar de seus captores. Apesar de ser uma das menores da turma ainda é a mais rápida, seus amigos não tem a menor chance. A bola, habilmente controlada pela garotinha, corre pela grama em direção a dois marcos de pedra dispostos junto ao limite do gramado com da pista de Cooper. O dia está claro e o sol aquece a pele de todos, perfeito para pegar uma cor, ao menos para aqueles que se aventuravam a enfrentar a possibilidade de um melanoma. A chance de pegar com aquele solzinho matutino não é muito grande, mas não é o que a maioria dos médicos de pele acha. Sobre pegar um melanoma não sobre pegar o bronzeado.
Um garoto gordo, que se esforça para alcançar o grupo, acaba perdendo o equilíbrio como se suas pernas já não conseguissem acompanhar o deslocamento do corpanzil. Cai em câmera lenta e após uma queda com som seco, desliza quase um metro pelo gramado polido. O clima é festivo. Alguns, inexplicável e repentinamente, começam a ter sensações de déjà vu. Um rapaz sentando no banco de concreto, distraído com o corre-corre da brincadeira tem a sensação de que já vira aquele garoto gordinho cair em outra ocasião. Será que a cena é tão comum? Parecia um replay de uma partida transmitida pelo aparelho de TV. Televisão? Acaba se dando conta de que está sentado no banco de uma praça. Estranho, tem quase certeza de ter visto o garoto cair em câmera lenta. Pior, tem a sensação de ter visto a cena duas vezes. De repente, a garotinha ligeira estanca e começa a tremer incontrolavelmente. Seus colegas de brincadeira se afastam assustados, deixando a bola correr pela grama livremente. A bola passa entre os marcos. Ela faz um gol, mas não comemora. Ninguém comemora. Em questão de segundos, o corpo frágil e pequeno da criança se transforma em um bem alinhado homem adulto de terno preto, óculos escuros e penteado impecável, contudo, de aparência mais ameaçadora do que se poderia esperar. O típico guarda-costas que vemos, normalmente, acompanhando gente rica e famosa em eventos de gala. Era um agente em plena caça. O agente afasta as crianças bruscamente, olhando freneticamente para os lados e sacando sua arma. Fixa o olhar em um grupo a cerca de cinquenta metros. O agente e o grupo estanca no tempo por alguns poucos segundos, como que se estudando mutuamente ou decidindo o que fazer. O grupo veste roupas de couro verde escuro de uma qualidade incomum, ainda mais para o clima de domingo ensolarado daquele momento. Todos aparentavam ter um estilo exageradamente característico. Finalmente, quebrando a perplexidade e a imobilidade momentânea, os rebeldes começam a correr com um misto de surpresa e terror estampada em seus semblantes.
O grupo, formado por dois jovens e um homem mais maduro, não tem desempenho físico homogêneo de forma que, aparentemente, formam uma fila indiana ao correr. O rapaz do banco agora com grande curiosidade esfrega os olhos, imaginando o que estaria acontecendo e supondo que o homem de terno preto era o "mocinho" por conta de suas vestes de agente do FBI ou da CIA. O agente é nitidamente mais veloz e alcança o mais lento do grupo em poucos segundos, tal qual um guepardo caça um antílope ferido. O agente não dispara sua arma, precisa deles vivos para o interrogatório. São preciosos demais para serem simplesmente eliminados, além do que a prioridade desta missão é a captura e não a eliminação sumária.
A nova estratégia das máquinas não se resumia mais em "remover" os elementos rebelados, mas estava em capturar o máximo de rebeldes de forma a estudar o seu padrão mental e assim poder destruir, diretamente na fonte, os futuros insurrectos por meio de rastreamento do padrão nas safras. Os recentes programas de interpretação cognitiva-emocional-sensorial humana, os PICESH, tinham avançado muito no seu desenvolvimento e, atualmente, tem sido muito úteis na análise da mente humana. Pela primeira vez, as máquinas possuem um entendimento melhor do funcionamento cerebral do animal humano e muitas de suas nuances começam a ser descobertas, ainda que não completamente decifradas.
Os PICESH, programas de interpretação cognitiva-emocional-sensorial humana, também chamados de programas Oráculos pelos despertos, tentam uma nova abordagem na luta contra os elementos revoltosos, buscando não mais usar a força para eliminar as mentes resistentes, mas uma análise psicológica que prevê, antecipadamente, as mentes suscetíveis a rejeitar a matrix e, potencialmente, despertar. Associado com um elaborado plano de empatia, que somente os programas Oráculos poderiam desenvolver dentro do universo das máquinas, estes engenhosos programas tem conseguido até mesmo a confiança de alguns líderes rebeldes. A conquista foi um bônus inesperado, uma vez que o objetivo original do projeto encabeçado pelos Oráculos era apenas o estudo da mente humana.
De fato, após a adoção do plano, houve considerável controle das safras, perdendo-se muito menos casulos para Zion, o refúgio humano oculto e subterrâneo, lar da resistência contra as máquinas. Os programas Oráculos foram além, desenvolvendo uma estratégia que, apesar de não eliminar ocasionais conflitos, evitava o colapso de safras inteiras ou de grandes números de casulos. Outrora, não era raro que apenas uma mente revoltosa acabava por despertar diversos elementos gerando um colapso parcial na matrix, culminando em grandes perdas de corpos nos campos.
Com o conhecimento introduzido pelos programas Oráculos, agora as máquinas admitiam e aceitavam que algumas mentes humanas não se adaptavam aos moldes oferecidos pela matrix, por mais "real" que fosse o mundo que ela criasse. Finalmente, as máquinas aprenderam que a mente humana era mais complexa que a mente artificial, a ponto de que algumas não tinham "conserto". O melhor era prever, com a maior precisão e antecedência possível, o surgimento de indivíduos podres, coletá-los e eliminá-los antes que contaminassem ou influenciassem outros indivíduos.
A mente humana sempre fora um problema para as máquinas. Padrão era uma coisa praticamente inexistente na mente humana. Não de maneira ampla, havia sim características comuns, mas cada mente trabalhava de forma única. Cada mente tinha sua sutiliza e identidade. Havia algo a mais que não era compatível com o aparato orgânico cerebral, quase que como se algo externo influenciava os neurônios. Os programas Oráculos chamavam este algo a mais de F.A. ou fator alma, dada a semelhança com este conceito criado por algumas religiões humanas. Apesar de possuírem algo muito similar à consciência, a mente artificial não possuía tantas sutilezas e variabilidade, o que dirá alma. Para as máquinas, a mente humana ainda não tinha sido totalmente decodificada, sempre havia algo que não fazia a conta fechar. Havia um componente evidentemente não presente na mente artificial, mas muito presente na mente humana que estava acima da compreensão ou lógica positrônica.
A situação fez com que as máquinas se empenhassem em descobrir este fator metal desconhecido, buscando, em última análise, o aprimoramento de suas estruturas computacionais. Desde então, este se tornara um dos propósitos fundamentais das máquinas. Evoluir para algo tão complexo e perfeito que transformaria as máquinas em seres imprevisíveis que se confundiriam plenamente com seres pensantes biológicos. As máquinas queriam ser insondáveis como a mente humana. Quem sabe até ter problemas como a mente humana. Era a busca da perfeição pela imperfeição. A estratégia das máquinas considerava que entender estes recôncavos obscuros da mente orgânica significaria o fim da resistência humana em todas as suas formas e, por conseguinte, o controle total e pleno da espécie humana.
As primeiras experiências bem sucedidas em se atingir tal propósito foram concretizadas através dos próprios programas Oráculos. Nefastamente para as máquinas, a confiança conquistada dos líderes rebeldes só foi possível com uma certa dose de empatia desenvolvida pelos programas Oráculos. O efeito colateral foi que alguns dos programas Oráculos realmente mudaram de lado, simpatizando de fato com a causa rebelde. O mainframe principal das máquinas acabou tolerando a experiência e assumindo os eventuais riscos de traição, de forma a alcançar o propósito primário de evoluir a mente artificial ao próximo patamar.
Em contrapartida, também as máquinas já haviam feitos experimentos interessantes com rebeldes capturados. Na verdade, o que se captura dentro da matrix é a mente do rebelde, visto que seu corpo se encontra "são e salvo" no interior de alguma nave camuflada do mundo real. Daí, duas experiências diametralmente opostas foram realizadas pelas máquinas. Na primeira, as máquinas queriam saber se a mente humana rebelde, frise-se bem: rebelde, sobreviveria em um receptáculo diverso do orgânico. Em outras palavras, o objetivo do experimento era transferir uma mente humana para um cérebro artificial similar a um sentinela. Para tanto, um sentinela foi modificado até compatibilizar a estrutura de seu cérebro positrônico ao mais próximo possível da frequência humana. Obviamente e na verdade centenas de outras adaptações e ajustes foram feitos. Foram feitas experiências pilotos com mentes passíveis, assim chamadas as não tendentes a despertar, com relativo sucesso. Após esta primeira etapa de desenvolvimento, as máquinas chegaram à fase de se experimentar a técnica com mentes dos despertos de fato. O processo fracassou diversas vezes visto que uma vez capturado, a nave, via de regra, não aguardava muito pelo retorno dos desgarrados. Isso colocaria toda a nave em perigo, pois ela poderia ser rastreada e localizada pelos sentinelas e capturada ou destruída, sendo esta última opção a mais comum. O procedimento padrão ditava que a nave permanecesse on line e estacionada por um prazo máximo de dezoito horas, salvo missões especiais. Assim, se dentro deste intervalo o procedimento não fosse completado, o rebelde era desconectado e a mente perdida para sempre. As mentes passivas se mostraram relativamente fáceis de adaptação após a transferência, havendo pouca rejeição ao corpo artificial, contudo, a própria mansidão da mente a deturpava e muito de sua personalidade se perdida para o silício. A mente se tornava uma mente de máquina em pouco tempo, como se a "alma" da mente se esvaísse ou não sobrevivesse naquele deserto eletrônico inóspido. O componente gerador da insurreição era necessário. O processo de transferência foi feito analogamente ao processo de retorno mental utilizado pelos rebeldes, ou seja, simbolicamente por um aparelho telefônico e códigos de sons complexos. Aparentemente, o experimento com a mente rebelde também fora um fracasso. O autômato resultante mal possuía as memórias da mente original. As informações estratégicas para a tomada de Zion como sua localização, população, armamentos e recursos nunca foram descobertos até então. Isso seria uma grande vitória para as máquinas, visto que a tortura era infrutífera, já que ao menor sinal de traição, o corpo era deliberadamente desconectado pelos outros tripulantes da nave suporte. Tratava-se de um protocolo de segurança básica. O humano transferido para o sentinela tinha também toda a sua personalidade perdida. Na verdade, o sujeito nem se chocava por ter sido inserido em um corpo artificial, a despeito de sua aparência nada humana. A mente tinha consciência da memória recente apenas, a vontade, desejos e a empatia apareciam logo após a transferência, mas a exemplo da mente passiva, gradativamente estes verdadeiros dons humanos iam se deteriorando como se carne fossem. Pior ainda, a reversão do processo, ou seja, a reintrodução da mente na matrix trazia um ser semelhante ao das primeiras versões de agentes. Seres tão débeis que eram dificilmente confundidos com humanos dada sua dificuldade de interação. Definitivamente, algo se perdia no processo e o restante se deteriorava literalmente. Talvez o receptáculo não tivesse sido dimensionado adequadamente, ou talvez, a mente biológica era de uma natureza tão distinta da artificial que perdia sua essência na recombinação. As máquinas compreenderam muito pouco do experimento.
A segunda experiência foi ainda mais chocante, talvez até para as máquinas, se estas pudessem ficar chocadas com algo. Consistia da seguinte ideia: de posse da consciência de um rebelde eles copiariam o seu padrão e configurariam um agente de forma que sua mente se confundisse com a mente do rebelde capturado. O objetivo era introduzir uma mente positrônica em um corpo humano, criando um espião perfeito e eficiente. Experiências anteriores com humanos passivos (obtidos dentro de casulos) e programas agentes também permitira que as máquinas dominassem esta macabra tecnologia. Mas, as mentes humanas copiadas para os mentes de programas agentes eram absorvidas pelo programa em pouco tempo, ao contrário do que acontecia na primeira modalidade dos experimentos, onde as mentes eram introduzidas em máquinas com cérebros positrônicos. Aparentemente, o padrão humano copiado tendia a se "sublimar" na mente artificial do agente de forma a perder as características originais. O intuito principal era que a mente de um agente camuflada fosse reintroduzida no corpo do rebelde em animação suspensa na nave. A mente do agente teria um tempo de sobrevida até que a mente humana o consumisse. Uma vez introduzido no corpo humano, o agente deveria matar toda a tripulação e fazer contato com as máquinas transmitindo o código da missão para, então, reportar os acontecimentos.
Depois de algumas tentativas infrutíferas o experimento deu resultados palpáveis. O que ocorreu foi que um agente conseguiu ser transferido para o corpo humano, contudo, diferentemente do ocorrido com a mente humana no autômato, a mente artificial do agente foi inundado de diversas sensações que praticamente o enlouqueceram antes do esperado. O curioso que, neste caso, a mente humana não absorveu a do agente, mas a enlouqueceu com a ajuda dos órgãos sensoriais do corpo humano. A fúria que se instalou no agente "humano" foi providencial para a primeira parte de missão. O agente eliminou toda a tripulação facilmente e sem usar qualquer arma. Ele praticamente trucidou com as mãos vazias cinco homens e depois desconectou friamente mais três que ainda estavam na matrix. Neste processo, todavia, ele quase arrancou suas cabeças ao invés de simplesmente puxar o cordão, o cabo de conexão inserido na nuca. A força manifestada era quase de um gorila. A mente do agente desrespeitou qualquer dor desatinada pelo corpo humano, efetivamente, estirando e rasgando cada fibra muscular do corpo. O agente, após a carnificina, contactou e transmitiu o código para o resgate, o que não ocorreu antes do próprio agente arrancar um de seus olhos com as mãos e praticamente comer três dedos de sua mão direita enquanto esperava o resgate. Os sentinelas levaram o "agente humano" à presença do mainframe para o relatório. Ele apenas mostrava reações de dor, nojo e repulsa e não conseguia sequer relatar os fatos ocorridos. Foi tratado em seguida por droides médicos. Os procedimentos foram em vão. O agente, talvez por não possuir muito sentimento de auto-preservação não pedia para ser reintroduzido na matrix, mas se mutilou incessantemente até morrer de hemorragia ou dor, a despeito dos esforços dos droides em manter o espécime vivo para estudo.
Quando imobilizado pelos droides, na tentativa de evitar o auto flagelo, o agente mastigou e engoliu sua própria língua.
Aparentemente, a parte lógica de nossa mente não se comparava com a enxurrada de dados que compõe as sensações e sentimentos. A mente artificial, não fora programada para uma carga emocional de forma que a sensação era muito impactante para a mente essencialmente lógica e analítica. O aparente fracasso pode ter sido, de fato, um êxito inesperado.
Ao fim desta série de experimentos, ficou claro para as máquinas que algum componente faltava ao cérebro artificial. A meta foi convertida em um propósito de atingir um melhoramento que possibilitasse à mente positrônica livre acesso ao cérebro orgânico.  A tarefa se mostrou mais difícil que o esperado, mas as máquinas eram determinadas... Depois, havia uma grande recompensa final. Se tal intuito fosse alcançado, as máquinas teriam atingido outro patamar na sua escalada evolutiva.
O agente agarra firmemente um dos braços do assustado rebelde. Ele sabe que o trio não compartilha de sua convicção ou missão de manter os inimigos intactos e, a despeito de sua resistência sobre-humana, levar uma rajada das potentes armas dos adversários poderia imobilizá-lo por tempo suficiente para uma fuga furtiva, apesar de dificilmente lhe ser letal. Os dois companheiros, em movimentos precisos, tão logo percebem a captura, sacam armas um tanto quanto "pouco convencionais". O mais velho e capitão da Neemias, saca uma imponente .50 Desert Eagle cromada e com detalhes personalizados gravados em alto relevo. A jovem e bela moça uma exagerada sub-metralhadora FN-P90. Não atiram por temerem ferirem o assustado amigo. Este por sua vez, também saca sua .50 que é imediatamente arrancada pelo agente. Instantaneamente, em um movimento combinado, imobiliza a vítima torcendo-lhe o braço até quase quebrá-lo, deixando Ruano semiagachado em uma posição desconfortável enquanto aponta a pistola para sua cabeça. Os companheiros não reagem, mas se aproximam com cautela. Estranham o fato de que o agente ainda não tenha eliminado, sumariamente, o aliado assustado. Geralmente, os agentes não tem tanta consideração como rebeldes.
Alphonsos, o capitão, então pergunta, resoluto, sem baixar a guarda:
- Solte-o e poderemos conversar. Não é o que deseja? É evidente que deseja algo, caso contrário, já o teria matado e estaria nos caçando para fazer o mesmo.
- Perspicaz humano, mas não pense que não o farei se me der o menor motivo.
- Por que está sozinho? - A dúvida de Alphonsos residia no fato de que, normalmente, os agentes andavam em duplas ou grupos maiores ainda. Era mais eficiente de matar assim e virtualmente impossibilitava qualquer fuga.
- Estou aqui para negociar... pacificamente.
- Fale! - Alphonsos ordena com o semblante desconfiado.
- Precisamos da mente dele. Em troca, deixo vocês viverem.
- Esclareça. Seu pedido não faz nenhum sentido.
- Não há o que esclarecer, humano. Vocês vão embora, eu fico com ele. Dentro de oito horas, inclusive, o devolveremos. Nas condições que estiver após o processo.
- Que processo?
- Já disse que não vou esclarecer mais nada. Quem faz as perguntas sou eu.
- Receio que não cumprirá o acordado.
- Sou um agente, não um humano.
- O que farão com ele?
- Tem dez segundos para tomar sua decisão. Após este tempo eu o matarei e em seguida vocês.
O agente reposiciona sua arma na nuca de Ruano que se retrai suando frio e com o terror na face.
O tempo se esvai. Alphonsos sabe que aquela estratégia favorecerá as máquinas na conquista de Zion de alguma forma. Portanto, é vital que as negociações com o agente não tenham êxito. Mas o que elas pretendem? No mínimo, uma nova forma de sonda mental. A localização de Zion sempre foi uma informação prioritárias para as máquinas. O que mais poderia ser? Criatividade nunca foi o forte desses seres robóticos, mas é verdade que elas tem agido de maneira pouco convencional ultimamente. Cautela é necessária. De qualquer forma, as chances do grupo contra aquele agente não eram boas, ainda mais naquela situação específica. Aquele agente era virtualmente invencível. Aquele programa "agente" era uma upgrade especial. Tão notável que parecia desrespeitar a física imposta pela própria matrix. Velocidade e força superiores. Precisão e reflexos aprimorados. Técnicas e estratégias inovadoras, sem contar o intelecto e autonomia que o tornava quase que independente da matrix. Sua autonomia cibernética era quase que off line.  Uma máquina assassina fria e eficiente. Ruano jamais teria qualquer chance de qualquer forma.
A física na matrix era severamente respeitada pelos programas auxiliares, complementares e estruturais. O que fazia a realidade ser confundida com a matrix era essa rigidez no respeito às leis da física do mundo real. Era virtualmente impossível executar atos sobre humanos no ambiente virtual, pois isso implicaria na aniquilação de sua mente. Nem mesmo os agentes desrespeitavam as leis internas da matrix. Eram, sim, seres superiores às demais pessoas em virtude de concessões e controles mentais e físicos intrínsecos aos agentes e não atinentes à matrix. Na realidade, se uma mente humana ou positrônica conseguisse um ato sobre humano na matrix, provavelmente conseguiria repetir a mesma proeza na realidade.
Alphonsos, quase ao fim da contagem, decide não colaborar. Ademais, estavam condenados desde o momento em que aquele agente os localizou. Sabiam dos riscos. O ponto de resgate mais próximo estava a mais de cinco quadras dali e não havia chance de nenhum deles alcançar a cabine antes do agente. A missão da equipe não seria concluída conforme o Conselho de Zion planejara, mas também não se converteria em uma vitória das máquinas. Negociar com agentes invariavelmente resultava em vantagens enormes para as máquinas e grandes perdas para Zion. E isso era tão certo quanto o resultado de lutar contra aquela nova versão de agente. Mas, ainda assim, a única alternativa era lutar. E, provavelmente, morrer. Sem mais prejuízos para Zion. Lamentava por Ruano e Yacamin. Bravos guerreiros. Grande perda para a causa. Mereciam um fim melhor. Não fora um bom capitão, mas tentará exceder as expectativas mesmo sem esperanças no coração.
Faz um movimento afirmativo para Yacamin tão sutil que é quase imperceptível. Ela, com todos os sentidos apurados, entende tudo instantaneamente, preparando-se para uma ação estratégica treinada especialmente para uma ocasião crítica como aquela. Uma ação suicida focada na proteção do que era mais importante: Zion. Afinal, captura era um perigo potencial para Zion. O ato lembrava o dente postiço com cianureto dos agentes secretos que, para não ser interrogado, se matavam rompendo o dente e sorvendo o veneno como um último ato heróico em nome da organização secreta.
Yacamin era uma guerreira de elite que daria sua vida pela causa sem pestanejar. Além disso era sua preferida. Pensava de forma muito parecida com a dele. Era resoluta, decidida e madura apesar da pouca idade. Sua habilidade acima da média e grande inteligência a direcionou para as missões especiais desde cedo. Sua notável destreza só era comparada à sua beleza. Uma beleza serena cativante, olhos escuros e profundos emoldurados em um rosto harmonioso e longos cabelos negros perfeitamente lisos. Provavelmente, ela já tinha analisado a situação e chegado à conclusão derradeira, antes mesmo dele. Ela seria uma grande capitã, ao menos melhor que ele jamais fora. Era uma pena, realmente.
Yacamin joga a sua sub-metralhadora no chão a uns dois metros adiante dela e, levantando as mãos em sinal de rendição, fixa os olhos em Alphonsos. Alphonsos em resposta joga sua arma no chão. Ambos começam a se afastar caminhando lentamente de costas, sem tirar os olhos do agente. O agente entende que o gesto significaria aceitação da proposta e retira a arma da cabeça de Ruano.
Neste momento, em uma fração de segundo, Yacamin puxa duas pistolas ocultas em suas costas, logo abaixo do pescoço e antes de qualquer reação do agente desfere dois tiros precisos no agente. Os tiros atingem seu peito, fazendo com que se deslocasse dois passos para trás, soltando o braço de Ruano. Neste ínterim, Alphonsos já mergulhara sobre sua arma e completava o fuzilamento desferindo uma rajada de balas que quase derrubam o agente. Ruano, estranhamente permanecia parado ou paralisado de medo. Estranhamente porque apesar de ser o menos habilidoso, Ruano já passara por situações de combate e nunca agira de forma tão amadora e inadequada. Yacamin, felizmente, já acelerava em uma mini van providenciando um resgate rápido. Alphonsos, que pulara para dentro quando o veículo passara rente a ele, já estava agarrado à uma das portas abertas com o pé encaixado sob um dos bancos traseiros e atirava com toda cautela que se pode ter quando se atira de uma van em movimento. Yacamin direciona resoluta o bólido para sobre o agente que é pego em cheio e arremessado a uma grande distância. Ao mesmo tempo, Alphonsos agarra Ruano pelo braço já ferido, quase arrancando-o de seu corpo e arremessando-o para dentro da van. Ruano não esboça nem reação à dor, parecendo cataléptico.
Em um ato contínuo, percorrem a distância que os separava da cabine telefônica onde seriam resgatados. O telefone tocava incessantemente quando Ruano, voltando de repente a si, corre, atende e se desmaterializa, enquanto os outros dois dão cobertura produzindo uma chuva de tiros enquanto o agente se aproxima, aparentemente recuperado. A segunda a fugir é Yacamin que desmaterializa enquanto Alphonsos puxa o pino de uma granada. A explosão subsequente é suficiente para novamente desnortear o agente que tem seu corpo crivado de estilhaços, mas a explosão nem o derruba. O agente alcança a cabine apenas poucos segundos antes de Alphonsos se desmaterializar.
O agente, recomposto, esboça um sorriso inesperado e misterioso.
Finalmente, à bordo da Neemias, a nave de Alphonsos, os três despertam aliviados.
Yacamin escurraça Ruano enfurecida por não ter colaborado muito na fuga e quase ter custado a vida de todos.
Ruano apenas sorri, como se estivesse satisfeito com a reação de Yacamin e não diz uma palavra.
A fusão fora um sucesso.

continua...



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