O fim da individualidade - Quem sou eu ou quem somos "eu"?


Drogas psicotrópicas, velhice, lobotomia, Espírito Santo, Blade Runner, Borgs e Naruto são o tema deste bate papo. Acredite, vou misturar tudo isso com uma pitada de Matrix, claro. Eu vou ou nós vamos... sei lá... depois de ler, você decide se leu o texto de um indivíduo ou de um pequeno grupo.

 Toda essa história começou quando pessoas queridas da minha família começaram a envelhecer. Chega uma hora na sua vida em que tios, tias e primos além dos seus avós começam a envelhecer e morrer. De fato, no meu caso, vi isso acontecer com meu próprio pai, mas como no caso dele também houve doença, vou excluir ele desse papo por enquanto. A velhice toma nossa beleza, nossa agilidade, nossos reflexos, nossa altura, nossa força e, por vezes, nossa consciência, nossa personalidade, nossa memória e nosso eu.... Quando uma pessoa que você ama te olha como um desconhecido, dá um clique dentro de você. Surge uma tristeza e uma sensação de perda, chegando a dar até medo quando você projeta essa possível realidade no seu futuro.

 Isso nos faz pensar como somos a nossa memória. Se você a perde, você se esquece não apenas das pessoas ao seu redor, mas também você se esquece de como você foi e de como você é. Realmente deprimente...

 Um efeito semelhante ocorre quando "precisamos" tomar drogas psicotrópicas para "regular" nosso comportamento. Ou seja, temos que, artificialmente, alterar níveis de dopaminas, endorfinas e outras drogas naturais de produção própria. A gente está deprimido, toma umas pílulas e pronto, estamos felizes novamente. Estamos agitados, pílulas, pronto: ficamos calminhos. Comportamentos humanos em vidrinhos, literalmente. Tudo para se ajustar ao mundo, afinal quem somos nós para querer mudá-lo? Acabamos por nos ajustar a ele custe o que custar. Mas o quanto destas drogas nos transforma em outra pessoa? Elas mudam nosso humor e comportamento ou muda quem somos?

Em13 de setembro de 1848, durante as obras de uma estrade de ferro em Vermont, Estados Unidos, um acidente acabou por cravar uma haste de metal na cabeça de Phineas Gage, então com 25 anos de idade. Ele era encarregado de explodir grandes rochas e para isso fazia furos e os enchia de pólvora com uma haste de ferro para promover uma compactação do explosivo. Não deu outra, em uma destas compactações, surgiu uma faísca que detonou a pólvora lançando a haste contra sua cabeça. Ela entrou pela sua bochecha esquerda e saiu no topo do crânio, destruindo seu olho esquerdo e parte do lobo frontal do cérebro.

Milagrosamente, Cage não apenas sobreviveu mas recobrou a consciência pouco depois do ocorrido, voltando a falar e até andar. Dois meses foram o suficiente para que se recuperasse o necessário para voltar as suas atividades normais.

Mas Cage não era mais o mesmo, pois depois do acidente se tornou grosseiro, impaciente e desrespeitoso a ponto de dificultar as interações sociais em geral. Acabou demitido por falta de disciplina e nunca mais conseguiu um emprego fixo, vindo a falecer aos 36 anos.

Estudos posteriores revelaram que Cage teve a região do córtex pré-frontal afetada, região responsável por tomada de decisões e processamento de emoções. Por fora, Cage quase não apresentava mudanças, mas internamente deixou de ser a pessoa agradável e bem humorada para se tornar grosseiro e antissocial. Isso nos faz questionar o quanto somos nosso cérebro.

Experimentos feitos com pessoas lobotomizadas, ou seja, aquelas que tiveram seus lóbulos cerebrais separados por razões terapêuticas chegam a ser assustadores. Eles demostraram que talvez já haja outra pessoa dentro de nós. No seu livro "Homo Deus: Uma breve história do amanhã", o isralense Yuval Noah Harari comenta alguns exemplos. Um homem que enquanto uma mão abria a porta, a outra tentava fechá-la. Um garoto que ao ser questionado o que desejava ser quando crescer, respondia serenamente que seria desenhista. Contudo, quando questionado por escrito, ele respondia que gostaria de ser piloto. Harari explica que como a fala integra o lado esquerdo, esta função acaba sendo dominada por este lado; por conseguinte, quando falamos, nosso lado esquerdo tende a dominar o lado direito. Quando o lado direito, se manifestava por outra forma, no caso, o garoto usou quadradinhos de madeira com letras de um jogo de palavras cruzadas, o lado direito – mais adaptável a este meio - manifestou sua preferência. É como se outro "eu" residisse dentro de nós mesmos e, quando não somos lobotomizados, há uma DR entre eles para que não fiquemos malucos com nossa ambiguidade inerente.

 Isso me lembrou dos Borgs de Star Treek, quando seres meio orgânicos, meio máquinas "desfrutam" de uma consciência única, um pensamento único. Na série eles tentam a todo custo "beneficiar" a tripulação da Interprise com esta dádiva da consciência compartilhada. Claro que Pickard e sua trupe não aceitam bem a ideia e sempre conseguem declinar da oferta, ao menos, a maior parte das vezes.

 Naruto com sua técnica de clonagem, o Kage Bunshin no Jutsu, que faz cópias de si mesmo para lutar acaba por criar um uso ligado à aprendizagem e treinamento. Ele percebe que se ao invés de usar suas cópias para dar sopapos nos seus inimigos, os usar no treinamento, ao se unir novamente, o tempo de treinamento de cada um deles se soma ao original. Assim, em pouco tempo, ele consegue multiplicar seu tempo de treinamento se tornando mais hábil em curto espaço de tempo. Em suma, a experiência de treinamento de cada um de seus clones não se perdia, mas ao contrário era somada ao original. Isso nos leva ao valor da experiência.

 A experiência de vida talvez seja o que tenhamos de mais valor. É dela que nos lembramos. É ela que nos molda. No caso do Naruto essa estratégia acumulava horas de treinamento, talvez no nosso caso ela componha o que nos torna únicos.

 Em Blade Runner de Philip K. Dick, o androide Roy momentos antes de morrer faz um pequeno discurso logo após salvar seu implacável algoz, Deckard, apenas para lhe dizer:

 "Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar. Nave de ataque em chamas na constelação de Órion. Vi raios C resplandecendo na escuridão próxima ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer."

 Roy buscava por vida, pois já era mais poderoso, forte e inteligente que qualquer humano. Mas porquê? Talvez no seu derradeiro discurso esteja a resposta. Da mesma forma que a foto de nossos filhos quando bebês tem grande valor para nós, para Roy, suas experiências únicas talvez fossem seu tesouro. Queria conservar este tesouro a todo custo, a ponto até de confidenciar parte delas a seu maior inimigo, poupando-lhe a vida. Desta maneira, assim como perder as fotos de nossos queridos filhos, perder memórias tão únicas representassem uma perda incomensurável. E de fato é. Imagens de nossos queridos filhos fixos em nossas memórias se perderão um dia como lágrimas na chuva? Nossas experiências, dores, alegrias, memórias um dia se apagarão para sempre perdidos no tempo? Vamos tentar responder essa questão.

 Coincidência ou não, na mesma semana quando li esse trecho do livro de Harari, nosso pastor ministrou um culto sobre Unidade, mais especificamente João 17, versículo 21-23. Quando li pela primeira vez tempos atrás, o trecho me pareceu meio obscuro e até incompreensível, mas guardando o que falamos até aqui, talvez não seja tão estranho, Jesus diz em oração ao Pai:

 Minha oração é que todos eles seja um, como nós somos um, como tu estás em mim, Pai, e eu estou em ti. Que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu dei a eles a glória que tu me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu estou neles e tu estás em mim. Que eles experimentem unidade perfeita, para que todo o mundo saiba que tu me enviaste e que os amas tanto quanto me amas.

 Se não fosse Jesus, pelo menos as partes sublinhadas, não poderiam refletir uma eventual oração Borg?

 Isso me fez pensar se essa individualidade, oposto à unidade, talvez fosse um momento de transitoriedade humana. Talvez nossa vida aqui seja uma chance de experimentar a exceção de ser individual e em um plano superior, atinjamos a perfeita unidade, sendo novamente um só. Está bem, sei que talvez esse pensamento seja muito treeker, mas não haveria a chance de estarmos tão acostumados em ser indivíduos que não possamos mais entender o que seria voltar ao Pai em unidade?

 Agora vamos lembrar das referências anteriores. De fato, sequer somos indivíduos, se lembrarmos que temos dois cérebros literalmente. E que muito provavelmente até discordam vez ou outra. A ligação que o corpo caloso faz entre os dois hemisférios cerebrais nos dá a ilusão de sermos apenas um cérebro. Perceba que Cage perdeu parte dele e se tornou outra pessoa praticamente.

 Aliás, voltando à João, no capítulo 14, versículo 15 ao 17, Jesus prestes a ser crucificado diz:

 "Se vocês me amam, guardarão os meus mandamentos. E eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Consolador, a fim que esteja com vocês para sempre: é o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece. Vocês o conhecem, porque ele habita com vocês e estará em vocês."

 Aqueles que creem então recebem um presente valioso, um espírito que habita neles. Ou seja, além dos seus dois "eus" ainda há, se você for cristão, mais o Espírito Santo dentro de você.

 Para finalizar as citações bíblicas ainda há em Marcos 10 versículos 8 e 9 um trecho muito proferido em casamentos:

 "...e os dois se tornarão uma só carne, e ele e a esposa estarão unidos de tal maneira que não serão mais dois, porém uma só pessoa. E nenhum homem deve separar o que Deus uniu."

 Ou seja, além de já não sermos tão individuais assim intrinsecamente por dentro, também extrinsecamente por fora, somos menos individuais quando casamos.

 Onde está chegando nosso individualismo até aqui? Não está restando muito.

 Talvez, o sacramento do casamento, enquanto dádiva, seja um menu degustação do que nos espera na vida eterna. Quando de fato nos tornaremos uma só pessoa, não apenas com nosso cônjuge e muito além do corpo caloso e da união divina com o Espírito Santo. Talvez, mas somente talvez, quero frisar: nossa união como o Pai quem sabe seja algo como a volta ao código fonte original, ao mainframe, à Matrix.

 Similar ao mundo de Matrix onde programas convivem com consciências humanas, todos transvestidos de gente, os jogos de computador mais modernos almejam alcançar um nível alto de realidade, dando a NPCs, sigla em inglês que significa Non Playable Character, traduzindo, personagem não jogável, algum nível de independência ou inteligência. A ideia é que os jogadores com seus avatares, ao interagirem com NPCs inteligentes tenham um vislumbre do mundo real muito mais imersivo. Para isso, cada NPC teria sua "vida", talvez relações, empregos, amores e, por que não, dramas e problemas. Assim, "matar" um NPC traria consequências muito maiores do que apens um bonequinho caído pintado de vermelho, mas poderia desencadear uma reação de cadeia em todo mundo aberto virtual, alterando o final do jogo e infinitas outras variáveis.

 Assim como Naruto, que tinha um limite de cópias que poderia fazer, atrelado ao seu nível de chacra ou energia (ainda que admiravelmente alto), os NPCs inteligentes estariam atrelados à capacidade computacional do Mainframe. Quanto mais poderoso, mais numerosos e/ou mais inteligentes cada um deles. Perceba que esta "inteligência" quando o NPC morresse não seria dissipada, mas retornaria ao Pai, aliás, ao Mainframe. Caso contrário, uma chacina de NPC faria o Mainframe colapsar, já que a capacidade computacional seria extinta e não recuperada.

 Esse paralelo é assustadoramente similar à nossa ideia de inexistência de individualidade e retorno ao Pai não como indivíduos, mas integrando um todo de uma forma muito diferente do que conhecemos no plano terrestre.

 Aquela cena clássica da gente chegando no céu e reencontrando os parentes queridos mortos e dando um grande abraço neles, talvez seja bem diferente. Hipoteticamente não os reencontraríamos, mas nos tornaríamos eles no melhor estilo Borg. Isso parece ruim? Um amigo meu já me disse que ser pai é ter um coração batendo fora do seu peito. Não seria um alívio para esses pais ter seus filhos novamente dentro de si? Eu sei que é bizarro, mas apenas porque tendemos a não aceitar o que não compreendemos, ainda mais quando a suposta verdade é tão disruptiva. De qualquer forma, isso é apenas coisa da minha cabeça, não precisam se preocupar.

 Alguém poderia perguntar qual o propósito disso tudo, afinal, no jogo até dá para entender o porquê desta distribuição de QI ou capacidade intelectual aos NPCs. No caso, para que tudo pudesse ser mais semelhante à realidade e satisfazer o jogador, aqui, praticamente um Deus. Surge uma questão: Não seria interessante acompanhar ao menos uma vida destes NPCs? Aliás, o que seria acompanhar a vida de cada um deles? Não ficou curioso? Se não, então todas estas experiências ricas, felizes, tristes, dramáticas, emocionantes, depressivas, comoventes e entediantes estariam perdidas no tempo... como lágrimas na chuva. O jogador poderia ficar até satisfeito, mas teria perdido, talvez, a melhor parte do jogo, que poderia ter ocorrido na intimidade oculta da vida de algum ou alguns NPCs. Nesta situação, o jogador mais curioso poderia coletar estas experiências para algum experimento futuro, propósito nobre ou até por mero capricho. O fato é que não jogar fora tais experiências seria o mais lógico. Como Roy, valorizamos as experiências, e lembre-se que Roy tem um intelecto superior ao nosso na sua condição de androide NEXUS 6.

 Levando-se em conta esta questão do valor da experiência para nosso exercício mental de fundição de consciência pós morte, assim como ocorria com Naruto, essa união não faria sumir as experiências de cada uma das entidades, mas estas seriam acumuladas. Se tornariam uma coisa só. Deus não precisaria consultar nossa ficha corrida, nossa capivara para verificar se fomos bons ou maus na terra, mas ele saberia instantaneamente por nos tornarmos parte d'Ele. Não haveria confissão, mas consciência plena e única. Ele saberia tudo, nossos queridos falecidos também, não porque contamos, mas porque nos tornaríamos eles e eles se tornariam a gente. Como disse Jesus: "Eu dei a eles a glória que tu me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu estou neles e tu estás em mim. Que eles experimentem unidade perfeita". Seria esta a unidade perfeita?

Concluindo, talvez o eu não exista e seja mais uma ilusão. Nunca estamos sozinhos de fato e um dia voltaremos ao nosso estado normal, qual seja, de uma unidade plena não apenas com todas outras pessoas, mas com Deus. Nesse dia, saberemos tudo sobre todos, pois seremos eles. Talvez não voltaremos para Deus, mas voltaremos a ser parte d’Ele. Nesse dia, quem sabe, todas nossas experiências serão de todos, boas e más. Até Roy estará lá, mesmo sendo androide. Pois como até ele compreendeu nos últimos momentos de sua vida breve, a memória de outro também nos faz eternos. E será desta forma que nada estará perdido no tempo, como lágrimas na chuva.





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