A vaca e a Matrix
Gostamos de pensar que somos seres solitários. O famoso cineasta norte-americano Orson Welles, deixou a memorável frase:
"Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. Somente através do amor e das amizades é que podemos criar a ilusão, durante um momento, de que não estamos sozinhos."
Mal sabia ele que é justamente o contrário: nós não estamos sozinhos. Somos um universo. Em verdade, há tantas outras criaturas em nosso corpo que, em termos numéricos, temos apenas cerca de 10% de células humanas. Os outros incríveis 90% são organismos componentes de nosso microbioma, ou seja, a enorme população de bactérias, protozoários, fungos, vírus e toda uma gama de criaturas fascinantes que, assim como Orson Welles, nunca sonhamos existir. E, de fato, elas estiveram, estão e estarão conosco até o fim de nossos dias. Mais verdade ainda: muitos estarão em nosso corpo, mesmo após nossa morte. Se alimentarão de nosso corpo, avançarão para áreas antes proibidas e se multiplicarão até sumirmos. Literalmente, vão apagar a luz e sairão por último.
Sim, temos estas criaturinhas, principalmente bactérias, por praticamente todo nosso corpo, mas o sistema digestório, em especial os nossos intestinos, são uma população à parte.
As bactérias intestinais estão tão integradas conosco que há estudos recentes que as relacionam com nosso comportamento e até mesmo com depressão, alegria, obesidade, doenças, enfim, são tantas as influências desses bichinhos ocultos que quase podemos dizer que eles, de certa forma, nos controlam. Veja que algumas bactérias podem induzir a produção de endorfinas para que fiquemos felizes, após uma lauda refeição, garantindo a próxima fartura e gerando hábitos alimentares pouco saudáveis. Outras podem ser neuróticas e transformarem tudo que podem em glicose, visto o desespero passado em épocas de vacas magras e nos fazerem engordar com uma fatia de pão. Algumas são territorialistas e são comuns em determinados povos como as que digerem algas marinhas, muito presentes em asiáticos e outras que digerem proteína animal com maestria transformando a dieta de leite, carne e sangue bovino dos Massais em uma dieta saudável (apesar de seus hábitos alimentares essencialmente de proteína animal, seus níveis de colesterol são perfeitamente normais).
Estranho pensar que a despeito da importância desses colaboradores na nossa vida, nossos genes, apesar de conter todas as informações de como nos "fabricar", não dispõe de informações de como devemos ser "povoados". Haja vista que gêmeos idênticos podem ter flora intestinal bem diferentes (diga-se de passagem o termo flora para estes animalzinhos é, hoje, reconhecidamente inadequado já que estas criaturinhas definitivamente não são plantas). Essa "contaminação" acontece após o nascimento por métodos naturais, como o contato com as bactérias do trato vaginal de nossa mãe, as mamadinhas e as primeiras papinhas. Na verdade, o momento em que somos mais sozinhos realmente é no ventre materno. Só temos nós mesmos e a mamãe. Há estudos também a respeito de como a cesariana, nos privando de algumas bactérias e nos expondo a outras, acabam influenciando nossa vida de bebê, e as vezes a de adulto, de uma forma nunca antes suposta. Alergias, intolerâncias, doenças crônicas e hereditárias... tudo isso e mais podem ser decorrentes da ausência de um parto normal e claro, das bactérias que ganharíamos de nossa mãe e de todo o processo. Mas todo esse estudo ainda é muito recente, mas promete revolucionar nossa visão nas áreas de bioquímica, medicina e nutrição, para dizer o mínimo. Já é hora de deixarmos o pensamento de que somos unicamente o que nossos genes impõe e pensar que somos um universo e sua população de microbiotas nos influenciam de forma tremenda.
Sempre me indaguei estupefato como uma vaca poderia se transformar em tanta carne e fornecer leite apenas se alimentando de feno, capim, grama - alimentos tão pobres, ao menos, do ponto de vista do ser humano. Mas depois do que leram, adivinhem quem ajuda a vaca a atingir este grande feito? Sim, você acertou: bactérias, fungos e protozoários em mutualismo com a vaca. No mutualismo, dois seres de espécies diferentes criam uma co-dependência na qual um colabora com o outro atribuindo concessões mútuas, auferindo benefícios a ambos.
Giulia Enders, em seu livro O DISCRETO CHARME DO INTESTINO explica de forma simples, mas genial, como nosso intestino e de outros seres, como a vaca, trabalham para nos garantir um suprimento de nutrientes saudáveis com a ajuda de nossas amigas bactérias.
A doutora Enders me encantou com o jeito como explica a digestão da vaca e acabou me saciando a curiosidade de como a vaca fica tão imensamente gorda comendo alimentos relativamente tão pobres (comparáveis a uma de nossas mais tristes dietas para emagrecer). A maior surpresa que tive foi de que a vaca, apesar de seu caráter herbívoro, bioquimicamente, se alimenta também de proteína animal. Sim, indiretamente e sob certa ótica poderíamos até dizer que a Mimosa come "carne". As bactérias, fungos e protozoários dentro do estômago da vaca, além de digerirem a comida do ruminante, convertendo-a em elementos fundamentais para seu organismo, também acabam sendo consumidos por ela. Enders, divertidamente, chama estas aglomerações maciças de bactérias de "micro bifes". Simplesmente, um banquete de bactérias, que por sua vez são rapidamente repostas pela acelerada multiplicação e ambiente favorável propiciado pelo trato estomacal da vaca, temperatura, umidade e todo o conforto que uma bactéria de vaca adoraria para viver e se reproduzir loucamente.
Sem esta população bacteriana, a vaca simplesmente não sobreviveria. Podemos até dizer que a vaca não digere seus alimentos, mas apenas auxilia os verdadeiros trabalhadores, deixando a tarefa ao seu especializado microbioma super especializado, o exército de organismos que, por toda sua existência, alteram, quebram e transformam o bolo alimentar ruminado das vacas em algo mais nutritivo para ela e, no fim, ainda são consumidos sem piedade pela vaca como mini bifinhos! Qualquer semelhança com o sistema previdenciário brasileiro é mera coincidência!
Ainda são novos os estudos da influência do microbioma na nossa vida mas, com certeza, cai por terra vários conceitos de que somos seres genéticos e isolados, dependentes apenas de nossa engenharia biológica para bem viver. Somos, sim, seres que dependem de outros seres em níveis nunca antes descobertos. Somos universos em sintonia com os seres que vivem conosco. Para eles somos Deus, somos seu mundo, talvez seu universo, seus guardiões e por vezes até mesmo seus algozes. Reciprocamente, há uma Matrix em cada um de nós. Um mundo de que não temos consciência, mas que está lá para que bem vivamos e sobrevivamos, na ilusão de estarmos e sermos um ser único e só. Independente e solitário. Talvez muitos prefeririam não saber disso e, como Cypher, voltar a dormir, considerando a ignorância como uma benção, mas...
Agora é tarde, você já despertou... Você é um universo.
Contudo, talvez também haja uma lógica inversa. Na qual somos seres tais quais as bactérias em nosso corpo. Talvez, trabalhemos todos para um único fim maior e nas nossa vivência possibilitamos que algo maior exista. Talvez essa algo maior também se beneficie com nossa existência ou nos tolere. Talvez, até precise de nós de uma forma que nunca saibamos. Talvez esse conceito poderia ser chamado de Deus... E se assim for, despertamos novamente: Você é uma bactéria.
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